O ato de se louvar o Rio em um originalíssimo (e raro) Almanaque não deixa de ser a possibilidade de uma convergência, o encanto sutil e imemorial de um amontoado de feitiços.
Certa vez, lá pelos anos 60, em domingo plúmbeo, fui almoçar no barraco de Cartola ao sopé da Mangueira. Mergulhei em mesa farta, coroada com a mitológica carne assada da Zica, preparada com arte e apuro ao molho madeira. Abelhudo que sou, fui à cozinha e logo comprovei que o já mítico molho era nutrido com outros segreditos. A grande quituteira jamais confessou, mas confirmei minha desconfiança de que ela batizava o molho com uma cachacinha, sabiamente perfumada com cascas de limão e guardada a sete chaves lá no fundo do armário da cozinha.
Eis que chega Vinicius de Moraes, acompanhado pelo filho Pedro. O poeta toma assento, pede a branquinha que reluzia à mesa e pergunta à
Zica pela carne assada – degustada de imediato por ele, lenta e sacralizadamente. Fixei para sempre na memória a cena dos dois poetas, em espichada conversa sobre o Rio, sua música e a alegria do carioca por viver e sorver a beleza da cidade.
Ao final, já caindo uma noite chuvosa e úmida, Vinicius se despede e, docemente, como era de seu feitio, agradece ao casal, dizendo que acabara de viver naquelas duas horas a intensidade da magia quase secreta do Rio – “estou na Mangueira, ouvindo Cartola, o poeta carioca, comendo a melhor iguaria do mundo, bebendo da pinga mais cheirosa e recebendo a hospitalidade mais doce e sincera. É claro que esta chuva lá fora é puro sol. As estrelas vão brilhar e vai raiar uma lua cheia daqui a pouco…”.
Vinicius de Moraes acabara de cunhar ali, na soleira do barracão de Cartola e Zica no Morro da Mangueira, à boca da noite, a definição mais eloquente e inamovível da magia da cidade de São Sebastião.
Este Almanaque, tramado pela coragem de Luiz Cesar Faro, desvela o espírito do Rio, acimentado pela matéria-prima mais vigorosa, os muitos de seus sortilégios. Que brotam torrenciais por todos os poros dos cariocas que amam a cidade. Sim, porque os há, de mentira, incapazes de conviver com a essência exalada pela miscigenação, pela mulatice, pela malemolência dos muitos bairros e dos muitos esconderijos sensuais, que a recuperam dos malfeitos e da inadmissível violência.
Este livro, sim, um Livro-Almanaque, se acode das miudezas e dos detalhes aparentemente banais, mas singularíssimos para o acolhimento exato do que é a entidade chamada “Espírito Carioca”.
Os editores da Insight, a partir da solidez de pesquisas históricas e de queimar pestanas (deduzo…) em busca da enormidade do que é recôndito aos olhares turísticos – nossos verdadeiros segredos – põem de pé um livro que representa uma contribuição de essência. É só ler este Almanaque quem quiser saber, mais e melhor, sobre a moldura visceral e única da
cidade de onde ela flui e se enfeitiça.
As surpresas das revelações que se seguem traduzem, com precisão e bom senso, o crucial desvelar que forma e identifica o milagre do Espírito Carioca. Logo, logo, em capítulos especialmente incandescentes para mim, os editores, com minha estimada Monica Sinelli a chutar em gol, adentram surpresas de originalidades. E deságuam na contemporaneidade da cidade.
Há uma configuração audaciosa e necessária de veredas totalmente desconhecidas. Ainda sobra espaço para a placidez da música clássica carioca nas igrejas centenárias. Sim, que ela também existe e sempre existiu, ostentando desde o princípio do século XVIII, virada do XIX, a opulência do Padre José Maurício, um mulato genial, que nas horas vagas se dava o prazer de compor lânguidas modinhas e até, há quem afirme (o nosso Dicionário Cravo Albin on-line), um tanto atrevidas.
Portanto, a longa e maturada história dos pilares desconhecidos, quase sempre obscuros, do carioca está bem aquinhoada neste Livro-Almanaque.
A convergência a que me referi ao início deste nem tão breve texto (embora o livro mereça páginas e páginas a não acabar, o que, aliás, é tentação perigosa para um prefaciador tão íntimo da matéria) pode ser avaliada ao se desdobrar cada capítulo. A trama de uma sequência canônica sem paralelo, as surpresas urdidas pela cidade, parecem mesmo convergir. E convergem para a avaliação de um cadinho de bons resultados, sintetizados, insisto sempre, na miscigenação, na descontração, na leveza da alegria do Rio, na absorção do todo. E no vômito de volta. Que é redentor, pela originalidade, e majestático, pelo fazer e viver carioca.
RICARDO CRAVO ALBIN
Presidente DO ICCA