Costumo dizer, o que é fartamente assinalado na matéria a seguir, escrita pela sabedoria e generosidade habituais de Mônica Sinelli, que o nosso Instituto Cultural Cravo Albin não para. E tampouco se deixa enfadar ou espreguiçar-se em bocejos pelo nada ter a fazer. Vi muita gente boa nesse quase ano de temores (justos) e paralisias (nem sempre honestas) adorando nada ter a fazer, justificando o “oh, que preguiça” do personagem Macunaíma, de Oswald de Andrade, em quase espasmos, a esconder um meio riso nos lábios de puro prazer – “não, não quero fazer trabalhinhos ou até arrumar um tempinho para mexer nos meus livros, muito menos escrever textos que continuo devendo. Eu até quero. Mas cadê tempo? Tudo que me sobra é aprisionar a mim mesmo para não sofrer qualquer risco. Qualquer desgaste pode ser fatal. Fale quem quiser, que não estou nem aí”.

Ante argumentos tão ardilosamente sedimentados, nada a dizer, muito menos a reclamar. Mas nosso Instituto, o que lerão pela Mônica a seguir, não parou, não teve tempo para parar, como ela mesma acentua, tanto quanto meu fraterno editor Luiz Cesar Faro, a mil com este quarto Almanaque, a perfilar mais um preito de visceralidade de amor à cidade de São Sebastião.

A cidade, de mais a mais, comportou-se heroicamente ao se ver obrigada a cancelar o desfile – e, aí sim, justificam-se todas as cautelas pelo absoluto respeito que agrupamentos de multidões carnavalescas devem manter pela saúde pública e pela vida. Tanto o desfile – orgulho do Brasil, o das Escolas
de Samba (pela Liga Independente da Liesa) – como o cada vez mais efervescente carnaval das ruas e dos bairros (pela Sebastiana, organizadora dos monumentais blocos), umas e outros guardiões da verdadeira entidade a que chamo amorosamente de “espírito carioca”.

O fato de estar sempre aberto a novos desafios e movido pelas paixões que ateiam labaredas em meu coração me deixou entre encantado e comovido ao ser procurado por Danielle Barros, secretária estadual de Cultura, e por Clara Paulino, presidente do Museu da Imagem e do Som (MIS). Ambas puseram mel em minha boca ao indagar com que ideia eu poderia contribuir para bem definir o prédio da Avenida Atlântica, há tanto tempo parado. Evoquei a ambas que, quando nomeado diretor executivo do MIS, em novembro de 1965, pelo meu amigo Raphael de Almeida Magalhães, o então vice-governador de Carlos Lacerda (já desincompatibilizado para disputar a presidência no ano seguinte) me fez pergunta igual: “O que fazer com este Museu da Praça XV? Que, pelo nome, parece indicativo de Museu do Cinema?

– Mas, Raphael, um museu cujos dois acervos principais são o arquivo Almirante, com o histórico personagem Almirante já dentro a cuidar do seu acervo como pai zeloso, e a discoteca do crítico Lucio Rangel (historiador apaixonado pela MPB e seus vultos históricos) tem quase obrigação de se dedicar ao produto cultural do Brasil de maior alcance no mundo inteiro, sua música popular miscigenada, cafusa, fruto mais eloquente das raças que forjaram a invenção de originalidade sem paralelos, a raça brasileira. O que já foi tão enfatizado por profetas – fundadores como Gilberto Freire, Câmara Cascudo, Sérgio Buarque de Holanda. No dia seguinte, o Diário Oficial do então estado da Guanabara saía com as nomeações para três novas fundações – a minha para o MIS, a de Lota Macedo Soares para o Parque do Flamengo e a de Lina Bo Bardi para o Parque Laje.

E, assim, assegurei à Danielle e à Clara, me encarreguei da árdua tarefa de parir o MIS para a opinião pública. Um fogaréu logo se iniciou: os depoimentos que batizei de “Para a Posteridade” fizeram arder no Brasil a curiosidade pelos testemunhos pessoais dos fundadores da MPB, inicialmente os criadores do samba, todos eles de 60 anos para cima, pobres, moradores de modestas casas no subúrbio carioca. À essa época a mídia estava se ocupando dos Festivais de Música – os novos e dardejantes jovens universitários da Zona Sul, com berço quase sempre na recente Bossa Nova, levada ao mundo pelo Trio Maravilhoso Regina, como chamava João Gilberto, Tom e Vinicius, também fraternos amigos meus, bem como dos apontados para titular o “Fogo da Posteridade”.

Embora um tanto constrangido, porque já imaginava o MIS da Atlântica todo planejado por dirigentes anteriores, disse a Danielle e Clara que repetia a elas a mesma frase do início do MIS: o único museu destinado a absorver uma das mais decisivas paixões do brasileiro, ao lado do futebol: a magia da MPB e sua embriagadora diversidade.
Imaginei de pronto utilizar-me do acervo monumental acumulado pelos meus 22 anos de trabalhos sempre ininterruptos – semanais, canônicos, com chuva ou com sol, sem parar sequer para feriados – a fazer, criar, atualizar todo o povo do cancioneiro popular. A ideia é concentrá-los todos em totens audiovisuais e temáticos, com suas vidas, obras gravadas, filmes, vídeos e conexões com épocas e gerações, espalhando-os por todos os andares do prédio da Atlântica.

Ao conhecer o projeto formulado pela Fundação Roberto Marinho, tive a grata surpresa de me deparar com as boas ideias de um dos curadores, o jornalista Hugo Sukman. Grande parte do que foi imaginado por ele já está armazenada e, certamente, nossa contribuição se somará, com identidade e conveniência, à definição prioritária em louvação à cidade e à música popular que nos representa.

Temáticas as mais diversificadas darão ideia da unidade do que se entende por MPB. A seguir, alguns dos itens sugeridos à administração: Sala Carmem Miranda: As mulheres da MPB, de Chiquinha Gonzaga a Ivete ou Anitta; Sala Pixinguinha: Os compositores da MPB, de Catulo e Ary a Tom Jobim; Sala Almirante: Dos pesquisadores e historiadores da MPB, de Lucio Rangel a Ruy Castro e Hugo Sukman; Sala Cartola: As Escolas de Samba, de Ismael Silva a Martinho da Vila; Sala Noel Rosa: Dos poetas da MPB, de Orestes Barbosa a Chico Buarque e P. C. Pinheiro; Sala Músicos da MPB do Brasil: De Radamés Gnatalli a Jacob, Luiz Gonzaga e Nazareth; Sala Instrumentos da MPB: Do bandolim ao pandeiro; Sala Gêneros Musicais da MPB: Do samba ao axé, do sacro ao choro; Sala dos Cantores da MPB: De Chico, Vicente e Orlando a Cauby, Milton, Ivan e Bosco; Sala Os Carnavais do Rio: De Lamartine Babo e Braguinha a J. R. Kelly; Sala Os Concertos e os Hinos para o Rio: Das sinfonias do Rio de Tom e Billy Blanco a Francis Hime e Cidade Maravilhosa; Sala Os Históricos: Dos cantores pioneiros, Baiano e Aracy Cortes, à evolução da fonografia, os discos 78 rpm, LPs, CDs etc.

A algumas consultas a museus internacionais para aferir opiniões sobre esse Museu (que sugiro ao Rio no sentido de linkar à virtualidade de nomes e temas da MPB), recebi respostas surpreendentes, como a da Casa Amália Rodrigues em Lisboa – “vamos fazer por cá, com vossa assessoria, a Casa da História do Fado”. Pois, pois…

RICARDO CRAVO ALBIN
Presidente DO ICCA